RSS

Arquivo da categoria: GRANDE SERTÃO

Status

19 a 19: um balanço poético.

 

Por Fabio Cordeiro

WP_20170512_011

19 de janeiro a 19 de maio.

No início do ano, ao participar de uma aula na UFF como palestrante, conheci Maria Fernanda, estudante de produção. Naquela data, possuía 19, hoje 20 anos de idade.

Ela me incentivou a fazer Insulto ao Público, texto sobre o qual fui falar.

Cai nessa “armadilha”.

E fiz um trajeto investigativo com o texto novamente.

Dessa vez, aproveitando todo o acúmulo de releituras e soluções de encenação que fui encontrando ao longo dos anos, entre 2004 e 2012, para colocar-me como performer.

Vocação. Movimento de dar voz ao seu propósito na vida.

Vocalizar. Vocalizei solo um texto escrito para quatro oradores.

Transformando em voz um texto tão lido, relido e escutado por mim, vivi o processo mais solitário até agora em minha trajetória de mais de 20 anos convivendo com coletivos de criação.

Como sempre, contei com a interlocução de Carlos Mattos, meu associado na Companhia.

Mas realizei tudo muito sozinho do ponto de vista físico. Até encontrar os nove espectadores que se dispuseram a comparecer na Scuola di Cultura.

Foram três dias (chuvosos) de ensaio aberto.

No primeiro dia, sete simpáticos e disponíveis.

No segundo dia, ninguém. Nonada.

Ensaio assim mesmo, aproveito o espaço e o tempo ali.

Terceiro dia, duas espectadoras. Uma senhora e uma jovem.

No dia 19 de maio foi diferente. Foi quando conheci Giovanna.

De um lado, uma senhora assídua frequentadora das atividades teatrais na cidade.

A palavra repetida por ela para se referir ao nosso trabalho: “diferente”.

Nosso trabalho: meu, de Peter Handke, dos espectadores presentes.

Do outro lado, a jovem. Ela demonstrou ser amante das artes.

Durante a “função” e na roda de nossa conversa.

Estudante de direção na UNI-RIO, como ela disse, de design na PUC.

As conversas realizadas após Insulto ao Público foram todas bem dialógicas, cheias de trocas e sorrisos.

Engana-se quem lê Insulto no título esperando agressões.

O espetáculo que realizo, em solo de teatro, esvazia a potência da agressão.

A finalidade ali é o jogo da reflexão. Refletimos uns nos outros. Espantar os ódios. Atrair o pensamento de modo lúdico.

Na sexta-feira seguinte, voltei ao local do “crime”. Ou da investigação.

Fui assistir uma leitura de Tennessee Williams.

Zoo de Vidro, ou À margem da vida.

Quando fiz prova para reingresso no curso de direção da UNIRIO escolhi uma cena dessa peça.

A mãe volta da rua depois de descobrir que sua filha não frequentava mais o curso de datilografia. Eu também não frequentei o curso de direção. Segui meu rumo pesquisando processo, autoria e formas corais na pós-graduação.

Em À Margem da vida (prefiro essa tradução teatral a uma tradução “literal”), o poeta se faz narrador e personagem, como em certas peças de Shakespeare.

Referência citada no próprio texto por diferentes modos.

A tradução do etos através do corpo; como se vê no problema da perna na irmã do poeta-narrador que reflete sua dificuldade de caminhar pela vida, assim como a corcunda de Ricardo III reflete sua falha de caráter.

O texto de Insulto ao Público é de 1966. Não há personagens. Nem narradores. Não há perguntas, nem o pronome eu. Somente “Nós”.

Tempo da Revolução Cultural na China. Tempo de passeatas nas ruas pelo mundo.

Vietnã. Homem na lua. O rei da vela do Teatro Oficina.

Em 1967 João Rosa assumia sua cadeira na ABL. Logo depois morria.

Maio de 1968. Contracultura. Ditadura militar por todo canto.

Peter Handke, o autor de Insulto ao Público, Grito de Socorro e Kaspar, nasceu na Áustria em uma região montanhosa e de fronteira entre a antiga Iugoslávia e a Itália.

Sua arte também é de fronteira.

Como foi a do Sr. Rosa, diplomata que cuidava dos assuntos de fronteira.

Os textos teatrais de Handke da década de 1960 são considerados marcantes para um novo panorama estético, chamado por Hans-Thies Lehman de pós-dramático por não corresponder mais a parâmetros da tradição literária dramática. Ou épica, como se encontra na obra de Tennessee Williams.

Handke chama essas obras de peças-faladas.

Ele retoma os antigos gregos, como Ésquilo, condensando o fenômeno teatral em sua realidade fática, como enunciação coletiva compartilhada e figurada pela presença do coro.

Jogo coral é também um traço marcante em Insulto ao Público. “Formas corais contemporâneas” foi tema de meu pós-doutorado sobre o teatro de Antunes Filho e Enrique Diaz. Diaz: parceiro-mestre-poeta da cena com quem comecei a fazer teatro.

Em Handke, encontramos a coralidade em meio a uma instância monológica; a singular voz do autor se coloca entre as palavras dos oradores marcando seu ponto de vista enquanto presença crítica ao seu tempo histórico, teatral e literário. “A nossa opinião não precisa coincidir com a do autor” (diz ele em Insulto ao Público). Teatralidade de falas, do jogo de palavras; um laboratório da escuta; das energias corporais.

A tradução que utilizo é a de George Bernard Sperber. Ele é casado com Suzi Sperber, brilhante pesquisadora da obra de Guimarães Rosa.

Simone Homem de Mello em conversa realizada em 2004 como o escritor austríaco confirma ser Handke leitor-admirador de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. A Perda da Imagem ou através da Sierra de Gredos remeteu sua tradutora ao Grande sertão: veredas “pela similaridade do ermo de Gredos com o sertão de Diadorim”, entre outros aspectos que eu, leitor, também percebo.

Em A Perda da Imagem há uma triangulação entre leitor, autor-poeta e sua musa-objeto da escrita. Ela, uma banqueira. Diadorim, guerreira. A escrita é porosa e permeável ao lugar que descreve; aos corpos ausentes que evoca.

“Quanto mais vigoroso o apelo por unidade, mais forte o eco, querendo dizer: separação, para sempre. Não apenas luto: dor, à beira do grito; dor de não-poder-ficar-junto-para-sempre. E foi assim que joguei fora, pelo teto do carro, a asa de falcão apanhada na floresta aluída pelo vendaval.” (Handke, A Perda da imagem, p. 165).

Dia-dor-im. Dor que se carrega dentro dia após dia.

Essa dor de “não-poder-ficar-junto-para-sempre” é que mobiliza Riobaldo, poeta narrador de si mesmo para inventar a memória de suas narrativas literárias.

Essa dor, que é de todo-mundo, é minha também.

Meu relacionamento amoroso (com uma moça chamada Bárbara) durou 19 anos, não chegou a 20 como a jovem Maria Fernanda. Moça que leva o primeiro nome de minha filha. Maria Luiza. Moça que carrega em seu segundo nome o primeiro nome da mãe da Giovanna Sassi (minha interlocutora no dia 19 de maio). Filha de Fabrizio. Eu, Fabio, o Cordeiro que não retira pecado nenhum do mundo. Maria Luiza significa “rainha guerreira”.

Como diz Riobaldo (e seus heterônimos Tatarana e Urutú Branco): “Diadorim é a minha neblina”. Ou: “O sertão é dentro”.

Dessa obra retiramos Nonada, que inicia, permeia e conclui o livro do Sr. Rosa. E a companhia fundada em 2004 (ano de meu casamento), com a primeira montagem de Insulto ao Público, teve que mudar de nome por imposição de um advogado detentor dos direitos autorais de “Nonada” (e do Grande Sertão). Para não virar nada, transformou-se em Nonata. Que vem do latim res-non-nata, assim como res-publica. Não por acaso a narrativa de Riobaldo é circunscrita pelo tempo da proclamação da República.

Como diz Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, “nonadas” eram os que não eram nascidos em prole abastada, nem portugueses, nem índios ou negros; os mestiços, filhos da terra do pau-brasil. Non-nata. Não nascido é o novo, o que ainda não foi visto. Portanto, é a obra por ser inventada. É também a brasilidade em construção.

Nonata Cia de Arte segue adiante pelas veredas do amor pela criação poética.

Com gratidão e generosidade na “partilha do sensível”,

escrevendo novas linhas, novas cenas.

 
Deixe um comentário

Publicado por em 3 03America/Sao_Paulo junho 03America/Sao_Paulo 2017 em GRANDE SERTÃO, Insulto ao Público, NOTAS DE PERCURSO

 
Citação

12227587_10207061237761934_5380858395291184413_n [foto de Anderson Dias, no sertão, na região do São Francisco]

(…)

– “Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada… Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada… Sou a coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De nada… De nada…”

(…). O dia envelhecia. (…).

(…). O sertão é sem lugar. (…).

 

[G. Rosa in Grande Sertão: veredas, 2006, 350-354]

sou nada

 
Comentários desativados em sou nada

Publicado por em 16 16America/Sao_Paulo outubro 16America/Sao_Paulo 2016 em GRANDE SERTÃO

 
Citação

 

12240112_10207065637031913_3663008509787576602_n

[foto de Anderson Dias, no sertão brasileiro, região do São Francisco]

Em Grande Sertão: veredas o termo nonada aparece 6 vezes ao longo do livro.

Transcrevo abaixo:

 

7-8

Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões.  O senhor ri certas risadas… Olhe; quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.  O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. Os gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho.  Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.

 

310-311

[…]. Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei mal? E em Otacília eu sempre muito pensei: tanto que eu via as baronesas amarasmeando no rio em vidro – jericó, e os lírios todos, os lírios-do-brejo – copos-de-leite, lágrimas-de-moça, são-josés. Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo. A Nhorinhá – nas Aroeirinhas – filha de Ana Duzuza. Ah, não era rejeitã… Ela quis me salvar? De dentro das águas mais clareadas, aí tem um roncador. Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela. E ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. (…).Se vendo minha alma, estou vendendo também os outros. Os cavalos relinhcham sem causa; os homens sabem alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? […]. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é quem sabe. O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucúia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe, sozinho.

 

326

Atirei. Atiravam.

Isso não é isto?

Nonada.

 

410-411

[…]. Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno – fechar o trato, fazer o pacto!

[…]. O que eu tinha, por mim – só a invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que algum tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais – é peta! – nonada.

Diadorim, esse, nunca teve instante desiludido. Sempre eu gostava muito dele. Só que não falasse; por aquele tempo eu quase não abria boca para conversação.

 

595

O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucúia é ázigo… Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta… O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?… Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.

 

608

(…). O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme… Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.

 

 

Seis vezes nonada

 
Comentários desativados em Seis vezes nonada

Publicado por em 16 16America/Sao_Paulo outubro 16America/Sao_Paulo 2016 em GRANDE SERTÃO

 
Status

O Sr. Rosa e a cena da leitura

Por Fabio Cordeiro |

Veja: no título, ele usa “Grande” para se referir ao “Sertão”. Veredas são caminhos estreitos. O livro começa com um travessão (ou seja: é uma conversa que já estava acontecendo, e o leitor acompanha a prosa em andamento; em fluxo, do rio ou da vida) encontrando a palavra Nonada… que é oposta ao Grande. O Sertão ao mesmo tempo é o interior do país como também é dentro de quem fala, escreve… ou seja… é invenção subjetiva.

joao-guimaraes-rosa1

Riobaldo, o narrador, é artífice de uma poética da leitura. Leitura que se faz de si, do mundo, dos livros; dicionários, significados, imagens, etc. Jagunço letrado, quando jovem foi professor. Na presença de um ouvinte urbano, o sertanejo do interior mostra sua capacidade e domínio com o manejo das palavras, entre sabedoria e poesia, força e fragilidade, grandiosidades e miudezas, coragens e valentias. Riobaldo quando fala no presente da narrativa relê não somente a sua história como a nossa, enquanto país independente no tempo das primeiras décadas da República, escravocrata e miliciano, longe dos dias democráticos, vividos na época da publicação de Grande Sertão (1956), com a recente eleição do também mineiro, e médico, Juscelino Kubitschek.

Ler é um exercício de abertura para ouvir o outro, o que o outro tem a dizer. Então, a cena da leitura é uma cena que valoriza o exercício de escutar e imaginar. Quando lemos fabricamos cenas imaginárias, compomos. Na primeira linha, o travessão. Na última, muitas páginas depois, a palavra travessia.  Ninguém atravessa o mesmo rio sendo o mesmo duas vezes, conforme o antigo grego Heráclito. Tudo o que Riobaldo diz não é relato científico, uma descrição do passado, mas poesia metafísica. Riobaldo é poeta e ator de suas memórias envelhecidas. Ele é fluxo constante de releituras.

Como teatralizar a cena da leitura?

Em 2002, como diretor assistente participei da teatralização de A Paixão Segundo GH, de Clarice Lispector, estreando no CCBB RJ. Em cena, um solo de Mariana Lima, com a direção de Enrique Diaz, figurinos de Marcelo Olinto, cenografia de Marcos Pedroso, iluminação de Guilherme Bonfanti, vídeos de Carolina Jabor e trilha sonora de Marcelo Alonso Neves. Era um solo, sim. Mas aconteciam momentos em que ela desaparecia. O espectador ficava com a luz… a música…o vídeo… ou com a voz em off, sem ela na tela… mas depois aparecia, sumia e voltava pro espaço cenográfico.

No projeto Grande Sertão: uma leitura por veredas a concepção está mais próxima dessa teatralidade, desse tipo de composição de linguagens. Não faremos um recital, com o ator declamando lindamente trechos cheios de bonitezas retiradas do livro. Não é essa a proposta. Em nossa concepção, da Nonata Cia. de Arte (Carlos Mattos e Fabio Cordeiro), a proposta é “colocar” Riobaldo em cena de maneiras espetaculares.  Riobaldo é e não é. Ele é jagunço e professor, é o demo e o amor, é Diadorim ou Otacília? Como narrador que atua em um monólogo é também um contador de histórias, um cantador de “causos”, um ator criando seu teatro. Convidamos Jackson Antunes, mineiro que vem do interior, onde parte da história do Grande Sertão acontece. Lá, no circo, ele falava textos literários, poéticos, no picadeiro.

Como teatralizar a cena da leitura?

 

LEIA mais >> “Existe é homem humano”

 
Comentários desativados em O Sr. Rosa e a cena da leitura

Publicado por em 25 25America/Sao_Paulo setembro 25America/Sao_Paulo 2016 em GRANDE SERTÃO

 
Status

LENDO POR VEREDAS 

11988268_10207065639111965_7256406988724022404_n

foto de Anderson Dias (em Porto da Folha, ilha do Ouro, próximo ao Rio S. Francisco)

Por Fabio Cordeiro

“Ao que vim ajustar são propostas. Ao salvo e lucro das nulas partes. As ambas. Caso se Ossa Seoria se concorde…” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas, p. 361)

O roteiro de Grande Sertão: uma leitura por veredas, em processo de elaboração, seleciona trechos do livro de Guimarães Rosa, tendo em vista o grande número de páginas do original, de acordo com a proposta de apresentar uma leitura em voz alta que teatraliza no espaço cênico suas partes mais marcantes.

Como a intenção é oferecer uma experiência lúdica e provocar no espectador o desejo de ler nossa literatura, busca-se a síntese sem incorrer na redução de seus conteúdos e formas literárias mais singulares. O caminho que se impõe é o da concentração, ao mesmo tempo, com o compromisso de compactar sem tornar superficial. O roteiro não procura dar conta de tudo, por ser tarefa inviável para uma apresentação pública de pouco mais de uma hora de duração. Além de cortar muitos trechos não se efetiva maiores interferências no texto do Senhor Rosa. Em meu processo de edição não modifico a ordem em que aparecem as frases. Tomo o cuidado de não alterar seu estilo como escritor, evitando dentro do possível alterar detalhes de sua narrativa. Ao mesmo tempo, é como se ouvíssemos os trechos (aos pulos ou galopes) avançando sem perceber as ausências das partes retiradas. A fragmentação do original está sendo mantida.

Sua estrutura lembra a de uma espiral, em que assuntos, personagens, memórias e diálogos retornam, voltam e desaparecem novamente, voltando a ecoar nas falas do narrador envelhecido, quando se dirige a seu interlocutor silencioso. Seria a figuração do escritor e do leitor que são convidados a recriar na imaginação o universo do sertão dos jagunços, suas guerras, sua miséria e riqueza, seus amores e suas vinganças. O que fornece unidade narrativa tanto ao livro quanto ao roteiro do espetáculo da Nonata Cia. de Arte é o encontro entre Riobaldo com o senhor doutor, seu ouvinte, metáfora para a presença do leitor e espectador. Na leitura sonorizada, essa relação se transforma com a presença de um ator que ao conversar com o público, lendo as palavras de Rosa, acaba assumindo comportamentos diferentes, mais teatrais, que vão além do simples ato de ler.

Na pós-modernidade, Ser e não Ser toma o lugar da questão. “Tudo é e não é”, como afirma Riobaldo, personagem do Senhor Rosa, que assim “teatraliza” através de um monólogo a própria história. De certo modo, há em Grande Sertão uma defesa crítica do mundo letrado como modo de superação da barbárie, representada pelos jagunços, personagens marginais. Conhecer é saber como aumentar a própria potência de agir. Assim, Riobaldo navega por seus pensamentos ao mesmo tempo em que recria, inventando como um poeta, aquilo que aparentemente viveu, retoma suas memórias do tempo da primeira república, entre veredas e batalhas pelo sertão brasileiro, para falar de seus amores e sabedorias adquiridas com o tempo vivido.

“Existe é homem humano”

 
Comentários desativados em LENDO POR VEREDAS 

Publicado por em 19 19America/Sao_Paulo setembro 19America/Sao_Paulo 2016 em GRANDE SERTÃO

 
Status

“Existe é homem humano”

10805759_878623445511047_3523684806105868028_n

Riobaldo é poeta e narrador de si mesmo; inventa sendo ele mesmo uma invenção poética. O personagem de João Guimarães Rosa é filho bastardo e único herdeiro de um fazendeiro no interior mineiro, ex-combatente entre jagunços e coronéis de um tempo que aparentemente acabou em nossa cultura. Em alguns momentos do romance aparece a expressão Nonada. Já na primeira linha. É comum pensar que a palavra seria um neologismo; mas não é.

Termo do português arcaico, nonada pode ser utilizado para referir-se tanto a alguém (um “zé-ninguém”) como a algo (sem valor ou insignificante). De acordo com dicionários contemporâneos, vem de uma redução do latim “res non nata” e quer dizer literalmente “coisa de não nascido”. Seu significado pode variar de acordo com o contexto em que atua como adjetivo para “pessoas não nascidas em prole abastada” ou para assuntos de “menor importância ou valor”.

Nonada, não-nada, ninharia, bagatela. Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro refere-se aos primeiros “brasileiros” nascidos em território “nacional” como “nonadas”. Nem portugueses, nem índios ou africanos, ainda não eram brasileiros, porque o país ainda estava por ser inventado. Nonada: coisa de nenhum ser. Nonadas eram os despossuídos, os que eram considerados como mestiços e se viram forçados a inventar, ao longo de décadas, sua própria e plural identidade étnica (a do brasileiro) a partir de heranças miscigenadas e do encontro com a diversidade de geografias de cada localidade.

Em Grande Sertão: veredas, mais ao final da obra narrada e protagonizada por Riobaldo, que diz ao leitor/ouvinte/espectador:

“O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.” (p.608)

Adotamos o termo Nonada e depois Nonata como eixo norteador para o trabalho que necessitamos desenvolver enquanto artistas-pesquisadores. Nonata ou Non Nata (o “não nascido”) fornece contornos para a trajetória que estamos percorrendo, buscando o Novo; os novos encontros, os novos trabalhos, as novas formas de auto expressar, resultando em obras ou ações singulares. Não massificar. Singularizar.

Nonata Cia de Arte para nós significa uma postura reativa a ser tomada diante da vida: não ao nada, não ao vazio de desejos e afetos, sim ao movimento, ao processo continuado de aprendizagens, na medida em que pouco pode representar bem mais que nada. Ainda que o nada seja parte essencial do fazer artístico, enquanto uma instância, um estado de passagem, “é preciso estar atento ao movimento”, como afirma Ítalo Calvino, em As cidades invisíveis (1972).

LEIA mais >>

Lendo por veredas

O Sr. Rosa e a cena da leitura

 
Comentários desativados em “Existe é homem humano”

Publicado por em 8 08America/Sao_Paulo setembro 08America/Sao_Paulo 2016 em GRANDE SERTÃO

 
Citação

O MILAGRE DA VIDA, Texto de Frei Beto publicado originalmente pelo Jornal O Globo, Seção Opinião, 01/11/1998. p. 7.

 

“As palavras pesam. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. Curioso é o organismo humano não possuir um órgão específico da fala. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição. A língua facilita a deglutição, como a traquéia, a respiração. No entanto, a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras.

 

“No princípio era o Verbo”, reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. O mundo foi criado porque foi proferido: “E Deus disse: ‘Haja a luz’ e houve luz”, conta o autor de “Gênesis”.

 

Vivemos sob o signo da palavra. Unir palavra e corpo é o mais profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há políticos e religiosos que primam pela abissal distância entre o que dizem e o que fazem. E há os que falam pelo que fazem.

 

A palavra fere, machuca, dói. Proferida no calor aquecido por mágoas ou ira penetra como flecha envenenada. Obscurece a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado e reboa, por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, o movimento anagógico e a meditação livram a mente de rancores e imuniza-nos da palavra maldita. Machado de Assis ensina que a palavras têm sexo, amam-se umas às outras, casam-se. O casamento delas é o que se chama estilo.

 

A palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. Somos convocados à reciprocidade. Essa força ressurrecional da palavra é tão miraculosa que, por vezes, a tememos. Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão de ternura que traria luz; mesquinhos, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos sentimentos.

 

Vivemos cercados de palavras vãs, condenados a uma civilização que temo o silêncio. Fala-se muito para dizer pouco. Nas músicas juvenis abundam palavras e carecem melodias. Jornais, revistas, TV, outdoor, telefone, correio eletrônico – há demasiado palavrório. E sabemos todos que não se dá valor ao que se abusa.

 

Carecemos de poesia. O poeta é um entusiasmado, no sentido grego de en + théos = com um deus dentro. Como sublinha Platão no “Ion”, nele fala a divindade, o Outro. Em linguagem psicanalítica, fala o inconsciente. Como Orfeu, o poeta desce à noite dos infernos para recuperar Eurídice, o fantasma do desejo.

 

Nossa lógica cartesiana faz do palavrório uma defesa contra o paradoxo. No entanto, sem paradoxo não há arte. O belo é irredutível à palavra, mas só a palavra expressa a estética. O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.

 

Há demasiado ruído em nós, em torno de nós. Tudo de tal modo se fragmenta que até a hermenêutica se cala. Hermes, o deus mensageiro, já não nos revela o sentido das coisas, mormente das palavras, que se multiplicam como vírus que esgarça o tecido e introduz a morte.

 

Guimarães Rosa inicia “Grande Sertão: veredas” com uma palavra insólita: “Nonada”.

Não nada. Não, nada. Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de fantasias.

 

Sabem os místicos que, sem dizer “não” e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância criativa.”

nonada e o milagre da vida segundo Frei Beto

 
Deixe um comentário

Publicado por em 29 29America/Sao_Paulo março 29America/Sao_Paulo 2012 em GRANDE SERTÃO