Por Fabio Cordeiro
19 de janeiro a 19 de maio.
No início do ano, ao participar de uma aula na UFF como palestrante, conheci Maria Fernanda, estudante de produção. Naquela data, possuía 19, hoje 20 anos de idade.
Ela me incentivou a fazer Insulto ao Público, texto sobre o qual fui falar.
Cai nessa “armadilha”.
E fiz um trajeto investigativo com o texto novamente.
Dessa vez, aproveitando todo o acúmulo de releituras e soluções de encenação que fui encontrando ao longo dos anos, entre 2004 e 2012, para colocar-me como performer.
Vocação. Movimento de dar voz ao seu propósito na vida.
Vocalizar. Vocalizei solo um texto escrito para quatro oradores.
Transformando em voz um texto tão lido, relido e escutado por mim, vivi o processo mais solitário até agora em minha trajetória de mais de 20 anos convivendo com coletivos de criação.
Como sempre, contei com a interlocução de Carlos Mattos, meu associado na Companhia.
Mas realizei tudo muito sozinho do ponto de vista físico. Até encontrar os nove espectadores que se dispuseram a comparecer na Scuola di Cultura.
Foram três dias (chuvosos) de ensaio aberto.
No primeiro dia, sete simpáticos e disponíveis.
No segundo dia, ninguém. Nonada.
Ensaio assim mesmo, aproveito o espaço e o tempo ali.
Terceiro dia, duas espectadoras. Uma senhora e uma jovem.
No dia 19 de maio foi diferente. Foi quando conheci Giovanna.
De um lado, uma senhora assídua frequentadora das atividades teatrais na cidade.
A palavra repetida por ela para se referir ao nosso trabalho: “diferente”.
Nosso trabalho: meu, de Peter Handke, dos espectadores presentes.
Do outro lado, a jovem. Ela demonstrou ser amante das artes.
Durante a “função” e na roda de nossa conversa.
Estudante de direção na UNI-RIO, como ela disse, de design na PUC.
As conversas realizadas após Insulto ao Público foram todas bem dialógicas, cheias de trocas e sorrisos.
Engana-se quem lê Insulto no título esperando agressões.
O espetáculo que realizo, em solo de teatro, esvazia a potência da agressão.
A finalidade ali é o jogo da reflexão. Refletimos uns nos outros. Espantar os ódios. Atrair o pensamento de modo lúdico.
Na sexta-feira seguinte, voltei ao local do “crime”. Ou da investigação.
Fui assistir uma leitura de Tennessee Williams.
Zoo de Vidro, ou À margem da vida.
Quando fiz prova para reingresso no curso de direção da UNIRIO escolhi uma cena dessa peça.
A mãe volta da rua depois de descobrir que sua filha não frequentava mais o curso de datilografia. Eu também não frequentei o curso de direção. Segui meu rumo pesquisando processo, autoria e formas corais na pós-graduação.
Em À Margem da vida (prefiro essa tradução teatral a uma tradução “literal”), o poeta se faz narrador e personagem, como em certas peças de Shakespeare.
Referência citada no próprio texto por diferentes modos.
A tradução do etos através do corpo; como se vê no problema da perna na irmã do poeta-narrador que reflete sua dificuldade de caminhar pela vida, assim como a corcunda de Ricardo III reflete sua falha de caráter.
O texto de Insulto ao Público é de 1966. Não há personagens. Nem narradores. Não há perguntas, nem o pronome eu. Somente “Nós”.
Tempo da Revolução Cultural na China. Tempo de passeatas nas ruas pelo mundo.
Vietnã. Homem na lua. O rei da vela do Teatro Oficina.
Em 1967 João Rosa assumia sua cadeira na ABL. Logo depois morria.
Maio de 1968. Contracultura. Ditadura militar por todo canto.
Peter Handke, o autor de Insulto ao Público, Grito de Socorro e Kaspar, nasceu na Áustria em uma região montanhosa e de fronteira entre a antiga Iugoslávia e a Itália.
Sua arte também é de fronteira.
Como foi a do Sr. Rosa, diplomata que cuidava dos assuntos de fronteira.
Os textos teatrais de Handke da década de 1960 são considerados marcantes para um novo panorama estético, chamado por Hans-Thies Lehman de pós-dramático por não corresponder mais a parâmetros da tradição literária dramática. Ou épica, como se encontra na obra de Tennessee Williams.
Handke chama essas obras de peças-faladas.
Ele retoma os antigos gregos, como Ésquilo, condensando o fenômeno teatral em sua realidade fática, como enunciação coletiva compartilhada e figurada pela presença do coro.
Jogo coral é também um traço marcante em Insulto ao Público. “Formas corais contemporâneas” foi tema de meu pós-doutorado sobre o teatro de Antunes Filho e Enrique Diaz. Diaz: parceiro-mestre-poeta da cena com quem comecei a fazer teatro.
Em Handke, encontramos a coralidade em meio a uma instância monológica; a singular voz do autor se coloca entre as palavras dos oradores marcando seu ponto de vista enquanto presença crítica ao seu tempo histórico, teatral e literário. “A nossa opinião não precisa coincidir com a do autor” (diz ele em Insulto ao Público). Teatralidade de falas, do jogo de palavras; um laboratório da escuta; das energias corporais.
A tradução que utilizo é a de George Bernard Sperber. Ele é casado com Suzi Sperber, brilhante pesquisadora da obra de Guimarães Rosa.
Simone Homem de Mello em conversa realizada em 2004 como o escritor austríaco confirma ser Handke leitor-admirador de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. A Perda da Imagem ou através da Sierra de Gredos remeteu sua tradutora ao Grande sertão: veredas “pela similaridade do ermo de Gredos com o sertão de Diadorim”, entre outros aspectos que eu, leitor, também percebo.
Em A Perda da Imagem há uma triangulação entre leitor, autor-poeta e sua musa-objeto da escrita. Ela, uma banqueira. Diadorim, guerreira. A escrita é porosa e permeável ao lugar que descreve; aos corpos ausentes que evoca.
“Quanto mais vigoroso o apelo por unidade, mais forte o eco, querendo dizer: separação, para sempre. Não apenas luto: dor, à beira do grito; dor de não-poder-ficar-junto-para-sempre. E foi assim que joguei fora, pelo teto do carro, a asa de falcão apanhada na floresta aluída pelo vendaval.” (Handke, A Perda da imagem, p. 165).
Dia-dor-im. Dor que se carrega dentro dia após dia.
Essa dor de “não-poder-ficar-junto-para-sempre” é que mobiliza Riobaldo, poeta narrador de si mesmo para inventar a memória de suas narrativas literárias.
Essa dor, que é de todo-mundo, é minha também.
Meu relacionamento amoroso (com uma moça chamada Bárbara) durou 19 anos, não chegou a 20 como a jovem Maria Fernanda. Moça que leva o primeiro nome de minha filha. Maria Luiza. Moça que carrega em seu segundo nome o primeiro nome da mãe da Giovanna Sassi (minha interlocutora no dia 19 de maio). Filha de Fabrizio. Eu, Fabio, o Cordeiro que não retira pecado nenhum do mundo. Maria Luiza significa “rainha guerreira”.
Como diz Riobaldo (e seus heterônimos Tatarana e Urutú Branco): “Diadorim é a minha neblina”. Ou: “O sertão é dentro”.
Dessa obra retiramos Nonada, que inicia, permeia e conclui o livro do Sr. Rosa. E a companhia fundada em 2004 (ano de meu casamento), com a primeira montagem de Insulto ao Público, teve que mudar de nome por imposição de um advogado detentor dos direitos autorais de “Nonada” (e do Grande Sertão). Para não virar nada, transformou-se em Nonata. Que vem do latim res-non-nata, assim como res-publica. Não por acaso a narrativa de Riobaldo é circunscrita pelo tempo da proclamação da República.
Como diz Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, “nonadas” eram os que não eram nascidos em prole abastada, nem portugueses, nem índios ou negros; os mestiços, filhos da terra do pau-brasil. Non-nata. Não nascido é o novo, o que ainda não foi visto. Portanto, é a obra por ser inventada. É também a brasilidade em construção.
Nonata Cia de Arte segue adiante pelas veredas do amor pela criação poética.
Com gratidão e generosidade na “partilha do sensível”,
escrevendo novas linhas, novas cenas.