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29 mar

O MILAGRE DA VIDA, Texto de Frei Beto publicado originalmente pelo Jornal O Globo, Seção Opinião, 01/11/1998. p. 7.

 

“As palavras pesam. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. Curioso é o organismo humano não possuir um órgão específico da fala. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição. A língua facilita a deglutição, como a traquéia, a respiração. No entanto, a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras.

 

“No princípio era o Verbo”, reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. O mundo foi criado porque foi proferido: “E Deus disse: ‘Haja a luz’ e houve luz”, conta o autor de “Gênesis”.

 

Vivemos sob o signo da palavra. Unir palavra e corpo é o mais profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há políticos e religiosos que primam pela abissal distância entre o que dizem e o que fazem. E há os que falam pelo que fazem.

 

A palavra fere, machuca, dói. Proferida no calor aquecido por mágoas ou ira penetra como flecha envenenada. Obscurece a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado e reboa, por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, o movimento anagógico e a meditação livram a mente de rancores e imuniza-nos da palavra maldita. Machado de Assis ensina que a palavras têm sexo, amam-se umas às outras, casam-se. O casamento delas é o que se chama estilo.

 

A palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. Somos convocados à reciprocidade. Essa força ressurrecional da palavra é tão miraculosa que, por vezes, a tememos. Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão de ternura que traria luz; mesquinhos, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos sentimentos.

 

Vivemos cercados de palavras vãs, condenados a uma civilização que temo o silêncio. Fala-se muito para dizer pouco. Nas músicas juvenis abundam palavras e carecem melodias. Jornais, revistas, TV, outdoor, telefone, correio eletrônico – há demasiado palavrório. E sabemos todos que não se dá valor ao que se abusa.

 

Carecemos de poesia. O poeta é um entusiasmado, no sentido grego de en + théos = com um deus dentro. Como sublinha Platão no “Ion”, nele fala a divindade, o Outro. Em linguagem psicanalítica, fala o inconsciente. Como Orfeu, o poeta desce à noite dos infernos para recuperar Eurídice, o fantasma do desejo.

 

Nossa lógica cartesiana faz do palavrório uma defesa contra o paradoxo. No entanto, sem paradoxo não há arte. O belo é irredutível à palavra, mas só a palavra expressa a estética. O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.

 

Há demasiado ruído em nós, em torno de nós. Tudo de tal modo se fragmenta que até a hermenêutica se cala. Hermes, o deus mensageiro, já não nos revela o sentido das coisas, mormente das palavras, que se multiplicam como vírus que esgarça o tecido e introduz a morte.

 

Guimarães Rosa inicia “Grande Sertão: veredas” com uma palavra insólita: “Nonada”.

Não nada. Não, nada. Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de fantasias.

 

Sabem os místicos que, sem dizer “não” e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância criativa.”

nonada e o milagre da vida segundo Frei Beto

 
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Publicado por em 29 29America/Sao_Paulo março 29America/Sao_Paulo 2012 em GRANDE SERTÃO

 

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